24 outubro, 2006

Bibliotecário

Sobre o bibliotecário
Lucília Maria Sousa RomãoUm rápido olhar sobre a história da escrita e das bibliotecas é capaz de revelar a dimensão do passeio humano pelos caminhos de expressão, da tentativa de guarda e estocagem da memória. Mobilizando barro, cera, papiros, pedra, metal e couro animal, uma trilha de interpretações foi percorrida em suportes diversos, sinalizando a ilusão de que o tempo e o espaço poderiam ficar ali encapsulados. Deriva daí a superfície de um imaginário de suposto prestígio, dessa tarefa de preservar pensamentos para além do tempo de vida de seus atores e protagonistas. O investimento humano na construção desses espaços é determinado por relações sociais, em que os lugares de posse eram reservados a determinados círculos, fechados e dominantes, posto que não eram todos que dispunham de autorização e poder para adentrar o mundo dos livros e dos acervos. A base de sustentação de tais círculos só pode ser compreendida na distribuição desigual de saberes e poderes. Apenas alguns eleitos debruçavam-se sobre os materiais guardados, assim, a marca de pertencimento a determinado grupo ou classe social era a senha para o acesso ao espaço físico e imaginário da leitura. A biblioteca, local já falado no Egito como: "O tesouro dos remédios da alma", não se apresentava aberta aos escravos, plebeus e analfabetos; também não guardava todo e qualquer documento. Algumas obras eram "escolhidas", pelo bibliotecário, para ocupar espaço nas estantes, institucionalizando, assim, a importância delas, ao mesmo tempo em que se excluíam outras obras, tidas como indesejáveis e, assim, merecedoras de um apagamento. Pergunta-se: qual processo político define tal tarefa de selecionar? Como relações sócio-históricas estabelecem esse movimento de dar visibilidade a certos livros e não a outros? O que leva o profissional a identificar o lugar exato dos livros, tratado-os como importantes e merecedores de crédito, prontos a deitarem-se sob estantes das bibliotecas e integrarem acervos, enquanto outros livros são considerados menos valiosos? Tais questões sinalizam o processo sócio-histórico de saberes e poderes, que define o que pode e/ou deve ser guardado; o que merece persistir como vestígios do tempo para as gerações vindouras e quais escritos que devem ser destinados ao lodo do esquecimento. Esse movimento basculante de guardar (e esquecer) livros constitui um exercício reflexivo que vai bem além do trabalho técnico de catalogar, indexar e afixar códigos e organizar acervos, visto que reclama a compreensão o que está nas bordas desse fazer, isto é, a interpretação de processos e não apenas de produtos. Exige também que, além de olhar, ler e conferir o que está escrito nas lombadas dos livros, eles sejam abertos e vasculhados em suas reentrâncias, opacidades e deslimites. Entretanto, o mais recorrente é o esquecimento desses fazeres e o aprisionamento do bibliotecário à tarefa de manter a ordem, resguardar o silêncio, conferir entradas e saídas, domesticar o uso e assumir o lugar de bedel das obras, enfim, um guarda a garantir a guarda do acervo. Há indícios de que, nos últimos vinte anos, vários profissionais têm buscado assumir novos sentidos, deslocando-se dessa posição e enunciando de outra forma, embora tais mudanças ainda sejam tímidas.Lucília Maria Sousa Romão é professora da USP (Universidade de São Paulo), campus de Ribeirão Preto.
Fonte: http://www.portalbibliotecario.com.br/